5 de março de 2009

O Mito da Hospitalidade



O Mito da hospitalidade

(tradução livre de texto do poeta romano Ovídio - As metamorfoses, livro VIII)

“Certa vez Júpiter, pai-criador do céu e da terra, e seu filho Hermes, princípio de toda comunicação — donde vem a palavra hermenêutica —, resolveram disfarçar-se de pobres. Decidiram, sob esta forma, vir ao reino dos mortais para ver como ia a criação que haviam posto em marcha.
Júpiter depôs toda sua glória e Hermes desfez-se das duas asas, seu símbolo maior e de todos os demais adornos. Pareciam realmente pobres andarilhos das estradas.
Passaram por muitas terras e encontraram muita gente. Pediam ajuda a uns e a outros. Ninguém lhes estendia a mão. Recebiam maus-tratos e ouviram palavras ofensivas. Várias vezes foram afastados das portas com violência. Muitos sequer os olhavam. Era o que mais lhes doía: não serem sequer olhados, como se fossem cães lazarentos de casas abandonadas. Por isso, passaram fome e toda sorte de privações.
Depois de muito peregrinar e sentirem-se alijados por todos, o que mais desejavam era água fresca para beber, um prato de comida quente, aliviar os pés com água morna e uma cama para repousar os corpos. Sonhavam com a hospitalidade mínima!
Até que um dia chegaram à Frígia, província das mais longínquas e pobres do Império Romano, lugar para onde eram desterrados rebeldes e criminosos. Aí vivia um casal muito pobre. Ele se chamava Filêmon, em grego, “amigo e amável”, e ela Báucis, “delicada e terna”.
Sobre uma pequena elevação construíram sua choupana, rústica, porém muito limpa. Foi lá que, ainda jovens, uniram seus corações. O intenso amor tornava leve a pena. Viviam em grande paz e harmonia, pois faziam tudo juntos, um auxiliando sempre o outro. Quem mandava era também quem obedecia. Estavam já velhinhos, cansados de trabalhos e de dias.
Eis que chegaram à choupana Júpiter e Hermes, disfarçados de pobres mortais. Bateram à porta. Qual não foi a surpresa deles quando o bom velhinho Filêmon, sorridente, apareceu à porta e sem muito reparar foi logo dizendo:
- Forasteiros, vocês devem estar muito cansados e com fome. Venham, entrem em nossa casa. É pobre, mas está pronta para acolhê-los.
Os imortais tiveram que se abaixar para entrar. Dentro sentiram a boa irradiação da acolhida e da hospitalidade. Báucis, a “delicada e terna”, logo se apressou em Lhes oferecer duas cadeiras, na verdade, dois tamboretes de madeira rústicos. E foi buscar água fresca da fonte, atrás da choupana.
Filêmon, por sua parte, começou a reanimar o fogo da noite, quase apagado. Soprou as cinzas. Tomou raminhos finos e pedaços de lenha maiores, colocou-os por sobre as brasas ardentes e ajeitou a panela com água para aquecer. Dentro de pouco a água já estava morna.
Báucis com seu avental remendado começou a lavar os pés de Júpiter e de Hermes, jogando água morna pelas pernas até perto do joelho para que se aliviassem de verdade.
Filêmon foi à horta atrás da choupana e colheu algumas folhas e legumes, enquanto Báucis tirava do alto, onde estava dependurado numa vara, o último pedaço de toucinho que restara. Estavam até pensando em sacrificar o único ganso que tinham, aquele que guardava a pobre choupana. Mas os imortais o impediram com determinação. Seus olhos, entretanto, se encheram de lágrimas de comoção.
Numa panela de barro, bem antiga, cozinharam os legumes com o toucinho. Um cheiro bom de comida caseira se espalhava pela choupana a ponto de fazer salivar Júpiter e Hermes, mortos de fome.
Báucis tomou do azeite turvo e grosso que eles mesmos faziam, e o deitou por sobre a sopa. Grandes olhos de azeite espreitavam na superfície. Depois que tirou a panela, tomou alguns ovos e os meteu sob a cinza quente. Filêmon se lembrou do vinho que jazia numa vasilha escura e empoeirada no canto da casa, guardado como remédio. Haviam sobrado ainda alguns pedaços de pão do dia anterior. Aqueceram-nos na borda do fogão.
A hospitalidade e a aura benfazeja dos bons velhinhos fez esquecer a demora. E de repente tudo estava sobre a mesa em pratos limpos.
- Queridos hóspedes, vamos comer, pois vocês o merecem depois de tantas canseiras. Perdoem a simplicidade e a pobreza da cozinha.
E para não constrangê-los, Báucis e Filêmon, embora tivessem já comido, sentaram-se também à mesa para cear com eles.
Todos comeram à saciedade numa conversa animada e respeitosa.
Em seguida, Báucis e Filêmon se levantaram, tiraram nozes, figos secos e tâmaras de um baú, suporte dos pratos e das velas, e os serviram como sobremesa.
Por fim, os dois velhinhos ofereceram sua própria cama, a única que havia na choupana, para dormirem. Juntos puseram-se logo a arrumá-la. Colocaram lençóis limpos, embora visivelmente gastos. Estenderam por sobre o leito uma cobertura de honra, um velho tapete que guardavam para as festas. Júpiter e Hermes não se agüentavam de comoção. Lágrimas brotaram em seus olhos.
Instados a recolher-se, Júpiter e Hermes se dirigiram para a cama. Eis senão quando sobreveio grande e inesperada tempestade. Raios e trovões iluminaram a choupana e ribombavam pelo vale afora. Num instante as águas subiram ameaçando pessoas e animais.
Desculpando-se junto aos Imortais, Báucis e Filêmon se levantaram apressados para ir socorrer os vizinhos.
Foi então que ocorreu a grande metamorfose. Repentinamente, a tempestade cessou. E num abrir e fechar de olhos a choupana foi transformada num luzidio templo de mármore. Colunas em estilo jônico enfeitavam a entrada. O teto de ouro reluzia como o sol recém-saído das nuvens. Júpiter e Hermes finalmente mostraram quem eram, divindades no pleno esplendor de sua glória.
Filêmon e Báucis ficaram estarrecidos, cheios de alegria e ao mesmo tempo de temor reverencial. Puseram-se de joelhos, inclinando a cabeça até o solo em sinal de adoração.
Júpiter, senhor do céu e da terra, do sol e dos ventos, depois de ter aplacado a tempestade, bondosamente, disse:
- “Amigo e amável” Filêmon, “delicada e terna” esposa Báucis, façam um pedido que eu, Júpiter, em agradecimento, quero atender.
Báucis inclinou-se para Filêmon e colocou a cabeça encanecida sobre seu peito. E, como se tivessem previamente combinado, disseram unissonamente:
- O nosso desejo é de servir-vos nesse templo por todo o tempo que nos resta de vida.
E Hermes acrescentou:
- Eu também quero que façam um pedido para que eu, Hermes, o possa realizar.
E eles, novamente, como se tivessem combinado, sussurraram conjuntamente:
- Depois de tão longo amor e tanta concórdia, gostaríamos de morrer juntos. Assim não precisaríamos cuidar da tumba um do outro.
Seus votos foram ouvidos e receberam a promessa de cumprimento.
De fato, Filêmon e Báucis, os esposos hospitaleiros, serviram por muitos e muitos anos no templo, pelo tempo em que durou sua respiração.
Certo dia, sentados à tardinha no átrio, recordavam a história do lugar, de como, sem saber, hospedaram os deuses em sua choupana. Nesse momento Filêmon viu que o corpo de Báucis se revestia de ramos e flores, da cabeça aos pés. E Báucis viu também que o corpo de Filêmon se cobria todo de folhagens verdes. Mal puderam balbuciar juntos o derradeiro adeus porque se completou a grande metamorfose: Filêmon foi transformado num enorme carvalho e Báucis numa frondosa tília. Suas copas e galhos se entrelaçaram no alto. E assim abraçados ficaram unidos para sempre.
Quem passa por aquela região da Frígia, atualmente a Turquia, ainda hoje ouvirá esta fantástica história contada de geração em geração. Poderão ver as duas árvores centenárias, lado a lado, com as copas e os galhos entrelaçados. Elas lembram Filêmon e Báucis, esse casal hospitaleiro, e a metamorfose que conheceram por causa de sua hospitalidade.
E os mais velhos repetem a lição até os dias atuais: quem acolhe o peregrino, o estrangeiro e o pobre hospeda a Deus. Quem hospeda a Deus se faz templo de Deus. Quem faz dos estranhos seus comensais herda a imortalidade feliz.

In: BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível, vol. I: hospitalidade: direito e dever de todos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

Categories:

0 comentários:

Postar um comentário